Casa não é onde se mora
Casa não é onde se dorme
Não é onde estamos quando não estamos em lugar algum
Uma casa não se aluga
Uma casa não se compra
Aluga-se presente
Mas não se aluga passado
Nem tampouco futuro
Fiador algum aceita a oferta
Visito lugares por uma noite
Um mês ou dois anos
O contrato que prende é o mesmo que liberta
Saio pela porta sem precisar trancar
Tem uma casa que me habita
Mas eu não habito essa casa
Minha casa tem uma vista linda
De onde posso ver o mar
Tem dias que olho a janela e o mar me engole
Quando vejo estou molhada
Das águas que curam
Afago afogo afoita
Choro chovo e molho.
Levo minha casa para olhar a cidade
Que também molhada de tarde chorosa
Me convida a andar
O chão encharcado me fala aos ouvidos
O vento úmido me abre os pulmões
Os que se abraçam fogem da água
Os que se escondem procuram o calor
Lágrimas das nuvens escorrem como o tempo
Pros bueiros escuros da rua
Com o tempo soluço e me calo
Tempestuosa e agitada
Como as águas do céu e do mar
Da janela da casa que me habita
De pingo em pingo seco, ressaca,
E seca
Levo minha casa pra passear.
Por onde anda a sua casa?
- Onde habitas
Seus olhos são como bocas. Logo pela manhã, abrem, secos, incertos, pegajosos. Demoram a se pronunciar. A voz do olhar sai rouca, mas carinhosa. A luz da janela aberta entra pela garganta, rasgando o resto de sonho que ali ainda estava.
Em frente à cafeteira, já despertas, as bocas procuram o que comer. Os olhares de novo se cruzam. As bocas falam, mas são os olhos que comunicam. Como lágrimas, derramam-se ideias, planos, vontades, desafios, questionamentos. As bocas sorriem.
Os olhos ao longo do dia procuram. Leem, escrevem. Mandam notícias, fazem perguntas, esperam. Os olhos degustam lembranças, como pílulas de felicidade que não são necessárias engolir.
Os olhos que se reencontram no fim do dia costumam se cumprimentar tímidos. As bocas não se beijam, os olhos apenas sorriem. Como um alívio, engulo uma calmaria.
- Trechos de uma carta de amor
Aos poucos passo a passo passo a porta embora entreaberta a porta para. Entreaberta eu e a porta. Parto mas espero palavras pedidos apelos promessas para poder parar. O silêncio suplica e suplico sem sucesso só silencio e me despeço. Paro na porta e a porta me pergunta se paro ou se passo e silencio por saber que não passo porque sei que não vou voltar. Volto volta e meia como vício e venho e mesmo vindo venho cada vez menos viva volto e cada vez menos vida fica.
- Vísceras
Da dor do que fica faço lar da lágrima que limpa logo levanto das frases faladas forjo fogo e das não faladas escrevo cartas (pra depois queimar) da insônia que insiste celebro festa do desespero que me segue crio força da memória que me habita faço fogueira do medo que me prende faço poema.
- Pra depois caminhar
Quero que quando tudo for lençol
Eu te sinta por entre os fios
Como corpos que tramam uma tessitura que se desfaz pela manhã
Quero que quando tudo for lençol
Eu sinta teu cheiro por entre as pernas da cama
Empurrando os travesseiros socados em cima do tapete molhado
Quero que quando tudo for lençol
Você entre pela minha boca como o café quente que escorre pela língua
E, gole depois de gole, a ficar com teu gosto pelo resto do dia
Quero que quando tudo for lençol
Você já lá não mais esteja
Para que eu possa catar os trapos as roupas os travesseiros
Abrir a janela e sentir o arrepio do vento que me toca
Quero que você já lá não mais esteja
Para que quando tudo for lençol
Eu me estenda sobre ti e sobre o varal
As memórias os desejos as palavras
- Quando tudo for lençol
Me falta o teu rosto
Me falta o teu gosto
Me falta teu peito de encosto
Me falta teu carinho
Me falta tua voz falando baixinho
Me falta aquele cafezinho
Que a gente tanto gostava de tomar
Me falta o teu violão
Me falta a rima e o refrão
Me falta a cuíca o pandeiro e o samba
Me falta o ar
Me falta
Me fal
Me fala que vai voltar.
- Falta